No último fim de semana, aproveitei o feriado prolongado e tirei uns dias para viajar e como gosto de fazer fiquei sem internet. Quando voltei à cena o celular bombava com mensagens no whatsapp e o principal tema era: Beyoncé e o lançamento do álbum/filme Lemonade.
Entre os comentários muitas coisas chamaram minha atenção, a dita qualidade do álbum, o feminismo negro retratado por Beyoncé, as supostas revelações de traição do Jay-Z, entre outras. Mas confesso que o que mais chamou minha atenção foi uma suposta menção sobre africanos escravizados nos EUA que clareavam a pele com limão e que ninguém sabia muito se era verdade ou não.
Aquilo me intrigou, primeiro porque sou fã de um bom mistério, segundo porque já venho estudando cultura afro-americana há alguns anos e nunca tinha ouvido falar desse fato.
Na mesma hora, antes mesmo de assistir ao vídeo, fui pesquisar tudo que pude encontrar, para ver se achava qualquer referência feita por Beyoncé aos antepassados que usavam a tal limonada branqueadora e encontrei diversos sites, blogs, páginas no FB reproduzindo exatamente a mesma frase:
“Meus ancestrais escravizados tomavam limonada achando que isso iria embranquece-los. A mídia me deu limonada, mas não adiantou.” –Beyoncé
Após a frase a maioria das matérias explicava que Beyoncé escolheu o título do álbum Lemonade (limonada) como uma referência ao fato dos afro-americanos tradicionalmente fazerem uso do suco de limão para clarear a pele.
Apesar da exultação de diversos cyberativistas negros que acharam a frase positiva, achei a afirmação um tanto quanto forte e o fato de ser colocado como algo conhecido na história afro-americana, me fez pensar em como depois de anos estudando cultura afro-americana, convivendo com afro-americanos pessoalmente e profissionalmente e mesmo após dois anos de doutorado em um departamento de Black Studies nos EUA eu nunca tinha ouvido falar nessa tradição. É claro que eu sei que não posso ser pretenciosa e que nenhuma dessas experiências me faz ser expert em negritude nos EUA, mas realmente me intrigou o fato de nunca ter esbarrado com isso, quando já havia tido contato com tantos outros elementos culturais típicos da comunidade negra americana (eu consegui, por exemplo, matar na hora a charada da “Becky with the long hair”, pois já conhecia o contexto)
Comecei então a procurar pela mesma frase em inglês, primeiro em uma busca simples, por sites e blogs e depois fui aos perfis oficiais de Beyoncé nas redes sociais e simplesmente não encontrei nada.
Mas é claro que eu poderia estar procurando errado, então fui sentar e analisar o vídeo em si e em mais de 1h não ouvi uma única frase falando sobre clareamento de pele. Ouvi a fala sobre ancestrais, ouvi a frase da vó de Jay – Z sobre o que fazer quando a vida te dá limões, mas nada, nada mesmo sobre clareamento de pele.
Ainda assim, resolvi criar um post convocação no meu FB, onde chamei amigos afro-americanos, incluindo alguns pesquisadores de estudos do negro e perguntei sobre essa relação entre limões, clareamento e a comunidade afro-americana, se ela existia e se eles haviam lido alguma declaração de Beyoncé sobre seus ancestrais e o clareamento com limões. As reações foram diversas, passando por risos, indignação, questionamentos e explicações, mas nenhum deles ouviu ou leu nenhuma declaração de Beyoncé sobre limões, ancestralidade e clareamento e também não era do senso comum o uso de limonada como branqueador mesmo no período da escravidão. Apenas uma pessoa comentou esse fato e ainda assim mencionou que não era algo corriqueiro e muito menos do conhecimento geral da população negra.
Em uníssono eles respondiam que a referência a Lemonade feita por Beyoncé nada mais era do que uma referência a frase “se a vida te der limões faça uma limonada”, ou em outras palavras enfrente suas adversidades e transforme em coisas positivas, conceito que se pararmos pra pensar é transmitido por ela mais de uma vez no vídeo.
Nesse momento, eu já sabia então que a tal frase sobre ancestrais e clareamento de pele não passava de um hoax, um boato de internet. Mas o que começou a me intrigar foi: Por que esse boato de internet parecia só existir no Brasil? De onde surgiu a tal frase e onde buscaram a explicação? Quem foi o primeiro a traduzir esse texto?
Essas questões, me intrigaram principalmente por conhecer as facetas do racismo à brasileira.
O filme de Beyoncé, não é um vídeo simples, não é uma baladinha romântica para gritar um novo amor ou chorar um amor perdido, também não é uma música pra dançar batendo cabelo na balada com as amigas. O vídeo de Beyoncé é um vídeo reflexivo, introspectivo onde ela fala de um processo longo e denso de reconstrução emocional e espiritual. O vídeo de Beyoncé envolve elementos profundos da cosmologia africana que perpassam a própria existência de Beyoncé e o que ela demonstrava ser até então, o video de Beyoncé questiona relações interpessoais e traz conceitos do feminismo negro aplicados na pratica a sua própria vida e trajetória. O vídeo de Beyoncé é uma conexão entre ela e outras mulheres negras. (acompanhe o post que eu criei para o FB com a análise critica do video em um p.s. abaixo texto).
Então, ao fazer uma tradução errônea e dizer que o Beyoncé fala sobre ancestrais que clareavam a pele com limonada e dizer que essa é a razão do nome do álbum, mais do que simplesmente demonstrar uma dificuldade na compreensão do inglês (que com certeza os jornalistas que originaram as publicações não possuem), demonstram sim uma má fé em transformar um trabalho simbólico de louvor a ancestralidade e tradição africanas em algo que lembra exatamente a posição de subserviência. Para Beyoncé, suas ancestrais são demonstradas como rainhas que cultuam a deusas, mas na tradução, Beyoncé descende apenas de pessoas negras que queriam ser brancas. Quando lembro por exemplo, dos rumores na mídia americana de que Beyoncé clareou sua pele ao longo da carreira, reafirmo ainda mais que de inocente essa tradução não tem nada. Afinal, é uma forma de dizer “você está aí gritando amor à raça, mas no fundo no fundo quer ser branca”.
A mídia internacional em geral ao redor do mundo fez diversas leituras que podem ser consideradas no mínimo complicadas sobre Lemonade, entre elas a ênfase a traição de Jay-Z, ou suposições sobre quem seria a tal mulher, quando na verdade esse não é o foco do vídeo, tentando assim silenciar seu conteúdo de resistência, mas ainda assim me pergunto:
Como esse boato surge apenas no Brasil?
Dentre muitas possibilidades acredito que surge exatamente pelo caráter de negação do racismo brasileiro. Em um país que nega o racismo e faz questão de apagar a negritude de pessoas que se destacam de alguma forma, seria impossível fazer o mesmo com uma cantora internacional do porte de Beyoncé. Não seria possível negar o caráter de resistência negra que ela atribuiu a Lemonade, mesmo reproduzindo o conteúdo machista publicado na mídia internacional. Sendo assim, a única forma de amenizar o impacto que o video poderia causar na sociedade brasileira seria lembrando a população afro-brasileira o quanto a escravidão americana foi cruel e o quanto os negros americanos não são tão politizados assim, já que esses são velhos temas das discussões raciais comparativas seja na academia brasileira, seja na nossa mídia.
A certeza de que a má tradução, foi na verdade uma má intenção, se complementou quando vi ainda uma comparação entre o vídeo de Beyoncé e a capa da revista Veja publicada no portal G1 onde ao invés de Bela, Recatada e do Lar, como a mulher de Michel Temer, Beyoncé é descrita como Bela, Revoltada e do Mal, onde ainda que em uma tentativa de elogios a performance, o autor coloca Beyoncé como uma preta raivosa que saiu quebrando tudo feito louca com um bastão na mão. Acabou-se assim a poética, a mística, a espiritualidade da cena. Beyoncé ali é só mais uma negra louca e revoltada como tantas outras de nós. Não me fugiu também, a possível leitura das religiões de matriz africana expostas por Beyoncé, como religiões do mal.
Até o momento da escrita desse texto, não descobri como esse boato se iniciou, duvido muito que meu texto consiga se espalhar de modo tão rápido e eficaz como esse hoax, mas encerro com a certeza de que nem toda falta de compreensão da língua do mundo, faria jornalistas experientes enxergarem frases, posturas e atos de forma tão errônea se não fosse proposital.
P.S. Análise Crítica de Lemonade.
Assistindo Lemonade com muito cuidado. Beyoncé está falando sobre sua família, sobre como ela vê a ela mesma como amaldiçoada porque as mulheres de sua família tem sido oprimidas por seus homens e que ela sente que precisa ser curada. Ela fala sobre espiritualidade africana, e eu entendo (ainda que eu não pratique as religiões de matriz) que ela está falando sobre os rituais dos Orixás, entendo que ela dá detalhes sobre sua fé, que só alguém que pratica o culto poderia explicar e sentir. Eu entendo que ela sai da morte como Oxum (o que me lembra as aulas da minha professora Dr. Omise’eke Tinsley e a análise que ela tem feito há algum tempo sobre o trabalho da Beyoncé e como ela fala da Beyoncé como uma devota das religiões de matriz), vestida de dourado como uma nova mulher, que é capaz de exigir o que precisa. (Isso me lembra também os textos de Jurema Werneck sobre Yalodês e o feminismo negro). Mas Beyoncé também inclui menções a outros orixás em seu video. Ela fala sobre as dores de mulheres negras, sobre solidão da mulher negra e sobre as lutas das mulheres negras. Ela fala sobre ela mesma, mas também sobre seus ancestrais femininos, que vieram antes dela e que são parte de sua alma, que partilharam experiências de vida parecidas. Esses elementos podem ser facilmente detectados nos símbolos, nas roupas, nos penteados e na maquiagem tradicionais de África e também nas letras e na poesia. Ela também fala para as mulheres do presente e é possível ver isso através das mulheres que ela convida para participar no filme e fala sobre aquelas que virão no futuro. Quando ela fala sobre ser ou não como nossas mães, ela fala sobre mães, mas também fala sobre a Mãe Africa e aquilo que nós carregamos conosco no Atlantico. Eu entendo que ela também fala da possibilidade de retorno, ainda que seja uma possibilidade espiritual de retorno, para mulheres negras que podem dar passos de volta em direção a um caminho ancestral. Ela foi capaz de se abrir sobre ter ficado magoada com as atitudes do pai e como a garotinha dentro dela ficou puta com ele. Ela também fala de medo, medo do amor, medo da morte, medo de ser negra em uma Diáspora Genocida. Mas ela também fala sobre um novo começo, sobre se permitir ser amada, sobre laços de família e como isso é capaz de curar uma alma ferida e liberar perdão.
Lemonade pode ser ouvido por qualquer um, mas o álbum tem um alvo, e ainda que as pessoas digam que ele é sobre o Jay-Z, eu acho que o álbum também é sobre ele, mas não é para ele. Ele foi feito por Beyoncé para as mulheres negras, principalmente para ela mesma, mas também para todas as mulheres negras que podem se identificar com ela.